Avizinhando-se o Natal, havia também no Céu um rebuliço de alegrias suaves. Os Anjos
acendiam estrelas nos cômoros de neblinas douradas e vibravam no ar as harmonias
misteriosas que encheram um dia de encantadora suavidade a noite de Belém. Os pastores
do paraíso cantavam e, enquanto as harpas divinas tangiam suas cordas sob o esforço
caricioso dos zéfiros da imensidade, o Senhor chamou o Discípulo Bem-Amado ao seu trono
de jasmins matizados de estrelas.
O vidente de Patmos não trazia o estigma da decrepitude como nos seus últimos dias entre
as Espórades. Na sua fisionomia pairava aquela mesma candura adolescente que o
caracterizava no princípio do seu apostolado.
- João – disse-lhe o Mestre – lembras-te do meu aparecimento na Terra?
- Recordo-me, Senhor. Foi no ano 749 da era romana, apesar da arbitrariedade de frei
Dionísios, que colocou erradamente o vosso natalício em 754, calculando no século VI da
era cristã.
- Não, meu João – retornou docemente o Senhor – não é a questão cronológica que me
interessa em te arguindo sobre o passado. É que nessas suaves comemorações vem até
mim o murmúrio doce das lembranças!...
- Ah! sim, Mestre Amado – retrucou pressuroso o Discípulo – compreendo-vos. Falais da
significação moral do acontecimento. Oh!...se me lembro... a manjedoira, a estrela guiando
os poderosos ao estábulo humilde, os cânticos harmoniosos dos pastores, a alegria
ressoante dos inocentes, afigurando-se-nos que os animais vos compreendiam mais que os
homens, aos quais ofertáveis a lição da humildade com o tesouro da fé e da esperança.
Naquela noite divina, todas as potências angélicas do paraíso se inclinaram sobre a Terra
cheia de gemidos e de amargura para exaltar a mansidão e a piedade do Cordeiro. Uma
promessa de paz desabrochava para todas as coisas com o vosso aparecimento sobre o
mundo. Estabelecera-se um noivado meigo entre a Terra e o Céu e recordo-me do júbilo com
que Vossa Mãe vos recebeu nos seus braços feitos de amor e de misericórdia. Dir-se-ia,
Mestre, que as estrelas de ouro do paraíso fabricaram, naquela noite de aromas e de
radiosidades indefiníveis um mel divino no coração piedoso de Maria!...
Retrocedendo no tempo, meu Senhor bem-amado, vejo o transcurso da vossa infância,
sentindo o martírio de que fostes objeto; o extermínio das crianças de Vossa idade, a fuga
nos braços carinhosos da Vossa progenitora, os trabalhos manuais em companhia de José,
as vossas visões maravilhosas no Infinito, em comunhão constante com o Vosso e nosso
Pai, preparando-Vos para o desempenho da missão única que Vos fez abandonar por alguns
momentos os palácios de sol da mansão celestial para descer sobre as lamas da Terra.
- Sim, meu João, e, por falar nos meus deveres, como seguem no mundo as coisas atinentes
à minha doutrina?
- Vão mal, meu Senhor. Desde o concílio ecumênico de Nicéia, efetuado para combater o
cisma de Ario em 325, as vossas verdades são deturpadas. Ao arianismo seguiu-se o
movimento dos iconoclastas em 787 e tanto contrariaram os homens o Vosso ensinamento
de pureza e de simplicidade, que eles próprios nunca mais se entenderam na interpretação
dos textos evangélicos.
- Mas não te recordas, João, que a minha doutrina era sempre acessível a todos os
entendimentos? Deixei aos homens a lição do caminho, da verdade e da vida sem lhes haver
escrito uma só palavra.
- Tudo isso é verdade, Senhor, mas logo que regressastes aos vossos impérios
resplandecentes, reconhecemos a necessidade de legar à posteridade os vossos
ensinamentos. Os evangelhos constituem a vossa biografia na Terra; contudo, os homens
não dispensam, em suas atividades, o véu da matéria e do símbolo. A todas as coisas puras
da espiritualidade adicionam a extravagância de suas concepções. Nem nós e nem os
evangelhos poderíamos escapar. Em diversas basílicas de Rávena e de Roma, Mateus é
representado por um jovem, Marcos por um leão, Lucas por um touro e eu, Senhor, estou
ali sob o símbolo estranho de uma águia.
- E os meus representante, João, que fazem eles?
- Mestre, envengonho-me de o dizer. Andam quase todos mergulhados nos interesses da
vida material. Em sua maioria, aproveitam-se das oportunidades para explorar o vosso nome
e, quando se voltam para o campo religioso, é quase que apenas para se condenarem uns
aos outros, esquecendo-se de que lhes ensinastes a se amarem como irmãos.
- As discussões e os símbolos, meu querido – disse-lhe suavemente o Mestre – não me
impressionam tanto. Tiveste, como eu, necessidade destes últimos, para as predicações e,
sobre a luta das idéias, não te lembras quanta autoridade fui obrigado a despender, mesmo
depois da minha volta da Terra, para que Pedro e Paulo não se tornassem inimigos? Se
entre meus apóstolos prevaleciam semelhantes desuniões, como poderíamos eliminá-las do
ambiente dos homens, que não me viram, sempre inquietos nas suas indagações? ... O que
me contrista é o apego dos meus missionários aos prazeres fugitivos do mundo!
- É verdade, Senhor.
- Qual o núcleo de minha doutrina que detém no momento maior força de expressão?
- É o departamento dos bispos romanos, que se recolheram dentro de uma organização
admirável pela sua disciplina, mas altamente perniciosa pelos seus desvios da verdade. O
Vaticano, Senhor, que não conheceis, é um amontoado suntuoso das riquezas das traças e
dos vermes da Terra. Dos seus palácios confortáveis e maravilhosos irradia-se todo um
movimento de escravização das consciências. Enquanto vós não tínheis uma pedra onde
repousar a cabeça, dolorida os vossos representantes dormem a sua sesta sobre almofadas
de veludo e de ouro; enquanto trazíeis os vossos pés macerados nas pedras do caminho
escabroso, quem se inculca como vosso embaixador traz a vossa imagem nas sandálias
matizadas de pérolas e de brilhantes. E junto de semelhantes superfluidades e absurdos,
surpreendemos os pobres chorando de cansaço e de fome; ao lado do luxo nababesco das
basílicas suntuosas, erigidas no mundo como um insulto à glória da vossa humildade e do
vosso amor, choram as crianças desamparadas, os mesmos pequeninos a quem estendíeis
os vossos braços compassivos e misericordiosos. Enquanto sobram as lágrimas e os soluços
entre os infortunados, nos templos, onde se cultua a vossa memória, transbordam moedas
em mãos cheias, parecendo, com amarga ironia, que o dinheiro é uma defecação do
demônio no chão acolhedor da vossa casa.
- Então, meu Discípulo, não poderemos alimentar nenhuma esperança?
- Infelizmente, Senhor, é preciso que nos desenganemos. Por um estranho contraste, há
mais ateus benquistos no Céu do que aqueles religiosos que falavam em vosso nome na
Terra.
- Entretanto – sussurraram os lábios divinos docemente – consagro o mesmo amor à
humanidade sofredora. Não obstante a negativa dos filósofos, as ousadias da ciência, o
apodo dos ingratos, a minha piedade é inalterável... Que sugeres, meu João, para solucionar
tão amargo problema?
- Já não dissestes, um dia, Mestre, que cada qual tomasse a sua cruz e vos seguisse?
- Mas prometi ao mundo um Consolador em tempo oportuno!...
E os olhos claros e límpidos, postos na visão piedosa do amor de seu Pai Celestial, Jesus
exclamou:
- Se os vivos nos traíram, meu Discípulo Bem-Amado, se traficam com o objeto sagrado da
vossa casa, profligando a fraternidade e o amor, mandarei que os mortos falem na Terra em
meu nome. Deste Natal em diante, meu João, descerrarás mais um fragmento dos véus
misteriosos que cobrem a noite triste dos túmulos para que a verdade ressurja das mansões
silenciosas da Morte. Os que já voltaram pelos caminhos ermos da sepultura retornarão à
Terra para difundirem a minha mensagem, levando aos que sofrem, coma esperança posta
no Céu as claridades benditas do meu amor!...
E desde essa hora memorável, há mais de cinqüenta anos, o Espiritismo veio, com as suas
lições prestigiosas, felicitar e amparar na Terra a todas as criaturas.
Chico Xavier / Humberto de Campos
Crônicas de Além-Túmulo